Disputas recorrentes perante o judiciário brasileiro envolvem reclamações concernentes a avarias de carga atribuídas às operações de transporte marítimo.
Tendo em vista a absoluta predominância do referido modal para a circulação de mercadorias em âmbito nacional e internacional, baseada em análise da relação custo/benefício, torna-se relevante difundir conhecimento específico sobre as obrigações e responsabilidades das partes envolvidas, de forma para que as disputas sejam resolvidas justa e adequadamente.
Considerando o regime objetivo de responsabilidade civil (independentemente de culpa) aplicável ao transportador marítimo decorrente da natureza de sua obrigação (de resultado) e/ou do enquadramento da atividade como empreendimento de risco, o posicionamento do judiciário quanto ao dever de indenizar os interesses das cargas avariadas apresenta caráter nitidamente rigoroso, muitas vezes adotando visão simplista e sem considerar as especificidades legislativas e operacionais.
Inicialmente há que ser destacado que, não obstante a incidência do enfoque objetivo (independentemente de culpa), a responsabilização do transportador marítimo não deve prescindir da comprovação do nexo de causalidade, cujo ônus incumbe sempre ao polo ativo da demanda, nos termos do art. 333, I do CPC (“[…] Mesmo na responsabilidade objetiva, é indispensável o nexo causal. […]” – CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, 5ª edição, Ed. Malheiros, p. 483).
Por outro lado, ainda que a ocorrência das avarias tenha ocorrido durante o transporte marítimo, i.e., durante a custódia do transportador, oportuniza-se ao transportador a possibilidade de comprovar excludente legal de responsabilidade, consubstanciada em circunstância apta à desconstituição do nexo de causalidade.
Insta salientar, a propósito, que, não raro, nossos tribunais reduzem, de forma equivocada, as hipóteses de causa excludente de responsabilidade do transportador marítimo ao caso fortuito e/ou à força maior, cuja configuração, na ótica dos julgadores, igualmente demanda critérios substancialmente restritivos.
Ultrapassados os apontamentos iniciais, importante salientar que a pretensão deste artigo consiste em abordar, sem esgotar todas as outras possíveis excludentes de responsabilidade e seus respectivos requisitos, a necessária exoneração do transportador marítimo por avarias ocasionadas por inadequação de embalagem/acondicionamento da carga como excludente de responsabilidade no transporte marítimo conteinerizado na modalidade de embarque FCL.
A definição de Delfim Bouças Coimbra sobre a modalidade FCL/FCL é pertinente: “FCL/FCL – unitização sob responsabilidade do exportador e desunitização sob responsabilidade do importador.” (O Conhecimento de Carga no Transporte Marítimo. São Paulo: Aduaneiras, 4ª Edição, 2010. p. 57/58).
Em suma, a modalidade de embarque FCL evidencia que a embalagem e o acondicionamento da carga no contêiner é de responsabilidade e atribuição exclusiva do embarcador, sendo certo que o transportador marítimo recebe a unidade lacrada a bordo do navio para prosseguimento da viagem até o porto de destino.
Em transportes realizados de acordo com a modalidade acima referida, caso ocorram avarias à carga em razão de deficiência de embalagem e/ou acondicionamento no contêiner, ainda que durante a viagem marítima, o transportador marítimo não responde pelos prejuízos sofridos pelos interesses da carga.
Em que pese inicialmente restar identificado potencial relação de causalidade entre a atividade de transporte e a avaria à carga, bem como não restar configurado caso fortuito e/ou força maior, incide excludente legal de responsabilidade do transportador marítimo prevista no art. 4º, § 4º do Decreto-Lei no. 116/67, verbis:
“Art. 4º […] § 4º A inadequabilidade da embalagem, de acôrdo com os usos e costumes e recomendações oficiais, equipara-se aos vícios próprios da mercadoria, não respondendo a entidade transportadora pelos riscos e conseqüências daí decorrentes.”
Rompe-se, assim, qualquer liame de causalidade, circunstância que afasta inexoravelmente a responsabilização do transportador marítimo. A previsão expressa da excludente de responsabilidade do transportador relacionada a acondicionamento inadequado de atribuição do embarcador foi igualmente estabelecida pelo legislador para o transporte rodoviário (art. 12, I, II e IV da Lei no. 11.442/2007) e multimodal (art. 16, I, II e IV da Lei no. 9.611/1998).
Obviamente, se o operador de transporte multimodal e todos seus subcontratados devem ser liiberados de responsabilidade por danos causados em virtude de qualquer ato ou fato imputável ao expedidor/embarcador (incluída a inadequação de embalagem/acondicionamento), todo operador de qualquer modal de transporte, por corolário lógico, faz jus à incidência da referida causa de exoneração de responsabilidade.
A referida excludente de responsabilidade usualmente também se encontra estipulada nos contratos de transporte através da inserção da seguinte cláusula nos termos e condições dos conhecimentos de transporte: “If a Container has not been packed by or on behalf of the Carrier: The Carrier shall not be liable for loss of or damage to the Goods caused by the manner in which the Container has been packed, stowed, stuffed or secured.”
O suporte argumentativo para tal exclusão de responsabilidade — estabelecida no âmbito legal e contratual — é de fácil compreensão. A responsabilidade do transportador está atrelada estritamente à absorção dos riscos inerentes à operação de transporte. Um dano causado por inadequação de embalagem/acondicionamento da carga em contêiner, em verdade, não guarda relação com os riscos da operação de transporte, tendo em vista que sua causa determinante tem origem pré-embarque, ou seja, antes do início da responsabilidade do transportador.
A linha de raciocínio acima mencionada está respaldada pelo fato de que todas as apólices de seguro no ramo específico de transporte estipulam expressamente, por determinação do órgão regulador (SUSEP – Superintendência de Seguros Privados – Circular SUSEP 354/2007), a excludente de cobertura securitária por prejuízos causados em decorrência de inadequação de embalagem/acondicionamento da carga.
No mesmo sentido, dispõe o artigo 711 do Código Comercial, verbis: “Art. 711 – O segurador não responde por danos ou avaria que aconteça […] por alguma das causas seguintes: […] 6 – falta de estiva, ou defeituosa arrumação da carga; […] 10 – vício intrínseco, má qualidade, ou mau acondicionamento do objeto seguro;”
Importante refutar, de plano, o argumento relacionado à possibilidade do transportador recusar o transporte caso a embalagem/acondicionamento de carga não seja apropriada, algumas vezes suscitado para que não se aplique a excludente legal de responsabilidade.
Neste particular, deve ser notado que os conhecimentos de transporte usualmente contêm ressalva quanto ao desconhecimento do transportador acerca das particularidades da carga acondicionada nos contêineres (Said to Contain / Weight, measure, marks, numbers, quality, contents and value as declared by the Shipper but unknown to the Carrier).
As informações constantes nos conhecimentos de transporte são inseridas exclusivamente de acordo com a declaração do embarcador e o contêiner é entregue já lacrado ao transportador (FCL), não lhe sendo permitido inspecionar no momento do recebimento o conteúdo e as condições de acondicionamento da mercadoria no interior do contêiner.
A competência para abertura de contêineres lacrados e inspeção de mercadorias cabe às autoridades alfandegárias, sendo absolutamente vedado ao transportador à violação do lacre, sob pena de responsabilização tributária e civil.
Adicionalmente, considerando a similitude dos contratos de depósito e transporte (dever de guarda, conservação e restituição), aplica-se, por analogia, o artigo 630 do Código Civil: “Se o depósito se entregou fechado, colado, selado, ou lacrado, nesse mesmo estado se manterá.”
Tendo como base o princípio da confiança, não se pode responsabilizar o transportador marítimo por falha exclusivamente atribuível ao embarcador. Cada agente deve responder na medida de suas respectivas ações/omissões.
Outro aspecto que deve ser considerado é que cada mercadoria demanda uma modalidade específica de acondicionamento, sendo certo que o conhecimento técnico sobre o procedimento adequado somente pode ser exigido do embarcador/exportador e jamais do transportador marítimo. Inconcebível, por óbvio, imputar ao transportador marítimo o ônus de adquirir o know-how sobre acondicionamento adequado para toda e qualquer mercadoria e fiscalizar a correção do procedimento efetivamente implementado pelo embarcador.
Considerando ainda o contexto operacional, fato notório e indiscutível é a inexistência de viabilidade prática para o transportador marítimo efetuar, antes do carregamento a bordo do navio, fiscalização prévia acerca da correção do acondicionamento da carga dentro de cada contêiner recebido lacrado. Se esse ônus fosse imputado ao transportador marítimo, a operação portuária, que já sofre de congestionamento e falta de capacidade/agilidade nos portos brasileiros, tornar-se-ia absolutamente inexequível em termos logísticos e financeiros.
[epico_capture_sc id=”21329″]Não se sustenta, portanto, particularmente no que tange ao transporte conteinerizado na modalidade de embarque FCL (embalagem e acondicionamento de responsabilidade do embarcador), a alegação de que a excludente legal de responsabilidade debatida neste artigo se afasta pela suposta faculdade do transportador recusar a realização do transporte.
O judiciário brasileiro, em ocasiões em que houve apreciação de forma detalhada, técnica e com acuidade, já se posicionou favoravelmente à incidência de causa de exoneração de responsabilidade do transportador caso as avarias de carga sejam decorrentes de inadequação de embalagem/acondicionamento realizada pelo embarcador (expedidor, remetente ou exportador). A título exemplificativo, destacamos o acórdão proferido pelo TJSP nos autos Apelação Cível no. 7048483-0.
Do todo exposto, existindo previsão legal e contratual expressa, uma vez comprovado que a causa das avarias à carga consiste na inadequação de embalagem/acondicionamento e que tal procedimento, no caso concreto, era de atribuição exclusiva do embarcador (FCL – Full Container Load), impõe-se ao julgador, de forma absoluta, o reconhecimento da ausência de responsabilidade do transportador marítimo.
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