SISCOSERV: Soluções de consulta COSIT X DISIT
As soluções de consulta relativas ao Siscoserv, quando emitidas por uma Disit (Divisão de Tributação das Superintendências Regionais da Receita Federal do Brasil), devem ter por referência outra Solução de Consulta Vinculante da Cosit (Coordenação-Geral de Tributação) – sendo uma Disit autoridade de âmbito regional e a Cosit de âmbito nacional. Em que pese não haver hierarquia entre elas, suas competências são claramente definidas pelo Regimento Interno da Receita Federal do Brasil e pelas normas por ela editadas.
Assim, relevante, pois, é que, ao se analisar as soluções de consulta, tenham-se em consideração distinções importantes no que tange aos aspectos formais e materiais das mencionadas soluções.
As soluções de consulta relativas ao Siscoserv, quando emitidas por uma Disit (Divisão de Tributação das Superintendências Regionais da Receita Federal do Brasil), devem ter por referência outra Solução de Consulta Vinculante da Cosit (Coordenação-Geral de Tributação) – sendo uma Disit autoridade de âmbito regional e a Cosit de âmbito nacional. Em que pese não haver hierarquia entre elas, suas competências são claramente definidas pelo Regimento Interno da Receita Federal do Brasil e pelas normas por ela editadas.
Assim, relevante, pois, é que, ao se analisar as soluções de consulta, tenham-se em consideração distinções importantes no que tange aos aspectos formais e materiais das mencionadas soluções.
As soluções de consulta relativas ao Siscoserv, em especial aquelas emitidas pelas Disit, nada ou muito pouco solucionam. Ao contrário, na medida em que as lemos, cambaleamos entre contrariedades e inconsistências de ordem material e formal, impossíveis de serem entendidas suas lógicas.
Desta forma, fica evidente quanto o tema é ingrato para todos aqueles que se esforçam para entendê-lo.
As soluções de consulta são respondidas, muitas vezes, por auditores fiscais da RFB que, com a devida vênia, têm seu ofício voltado mais às questões tributárias do que às práticas do comércio exterior e, em especial, do transporte internacional de carga, um universo ainda mais estranho, eis que se regula muito por costumes e normas pouco conhecidas.
A Solução de Consulta Disit/SRRF08 nº 8005/2017, publicada em 06.02.2017, e a Solução de Consulta Disit/SRRF09 nº 9054, publicada em 15.02.2017, são bons exemplos disso.
Todavia, enquanto revisamos o presente texto, eis que a Cosit publicou a Solução de Consulta nº 108 datada de 3 de fevereiro de 2017 e publicada no Diário Oficial hoje, 20 de fevereiro de 2017, relativa a demurrage, como veremos na sequência.
Inicialmente, cumpre-nos entender as competências para oferecer solução de consulta acerca do tema.
A Instrução Normativa RFB nº 1396/2011 “dispõe sobre o processo de consulta relativo à interpretação da legislação tributária e aduaneira e à classificação de serviços, intangíveis e outras operações que produzam variações no patrimônio, no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil”.
O art. 7º da mencionada norma estabelece que a solução da consulta compete à Cosit. Já o § 1º, que a ineficácia da consulta poderá ser declarada pela Disit e pela Cosit.
A mesma norma, em seu art. 9º, define que
a Solução de Consulta Cosit e a Solução de Divergência, a partir da data de sua publicação, têm efeito vinculante no âmbito da RFB, respaldam o sujeito passivo que as aplicar, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por elas abrangida, sem prejuízo de que a autoridade fiscal, em procedimento de fiscalização, verifique seu efetivo enquadramento.
Trocando em miúdos, regra geral, quem tem competência para responder solução de consulta é a Cosit, sendo que suas decisões são vinculativas para os outros órgãos da RFB, incluindo a Disit. Define ainda que não precisa ser o consulente para poder se apoiar sobre tal solução, podendo ser aproveitada por todos, desde que se enquadre na hipótese.
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Isto posto, cabe ainda esclarecer a competência da Disit para responder soluções de consulta.
Tendo por base o art. 22 da mesma IN RFB nº 1396/2011, tem-se que, “existindo Solução de Consulta Cosit ou Solução de Divergência, as consultas com mesmo objeto serão solucionadas por meio de Solução de Consulta Vinculada”. E o parágrafo único dispõe que a Solução de Consulta Vinculada, assim entendida como a que reproduz o entendimento constante de Solução de Consulta Cosit ou de Solução de Divergência, será proferida pelas Disit ou pelas Coordenações de área da Cosit.
Desta forma, tem-se, com base na norma emanada da própria Receita Federal, que a Disit pode emitir solução de consulta quando houver uma solução Cosit que trate do mesmo objeto, devendo aquela reproduzir o entendimento desta. Portanto, sem inovações.
Explicadas, portanto, as competências de cada órgão da Receita Federal para responder soluções de consulta, neste caso sobre Siscoserv, observam-se as soluções sob análise, utilizadas como exemplo.
Inicialmente, a Solução de Consulta Disit/SRRF08 nº 8005/2017, publicada em 06.02.2017, que responde a consulta de um contribuinte de sua região, tendo por fundamento, conforme mencionado em seu próprio texto, solução de consulta vinculada às soluções de consulta Cosit nº 66[1], de 14.03.2014, e a nº 257, de 26.09.2014.
Então vejamos a ementa da Solução de Consulta Cosit nº 66:
NBS – Classificação para fins de declaração no Siscoserv Os serviços de intermediação de venda de passes para transporte ferroviário internacional de passageiros se classificam no código 1.1804.19.00 (Outros serviços de planejamento e reserva em transportes) da Nomenclatura Brasileira de Serviços, Intangíveis e Outras Operações que produzam variações no patrimônio – NBS – Siscoserv.
Da conclusão da mencionada solução destaca-se:
Pelo exposto, declara-se que os serviços de intermediação de venda de passes para transporte ferroviário se classificam como outros serviços de planejamento e reserva em transportes, na subposição 1.1804.19, do capítulo 18 da NBS, conforme determina sua nota explicativa nas Nebs. 24. O valor a ser informado, por sua vez, é o valor total que a operadora de turismo recebe a título de remuneração pela venda dos passes de trem.
Em que pese a solução Disit não trazer em seu texto todos os elementos utilizados para resolver a questão, como ocorre nas soluções da Cosit, não nos parece haver o mesmo objeto ou reproduzir o entendimento constante de Solução de Consulta nº Cosit 66. Pode-se então concluir que a Solução Disit/SRRF08 nº 8005 não pode ter se vinculado à Cosit 66.
Analisa-se, então, a Solução Cosit nº 257, a mais esperada de todas as soluções, que colocou fim na discussão quanto à responsabilidade de quem deve declarar o frete (importador, exportador ou agente de carga). Esta, quem trabalha na área de comércio exterior, conhece de cor e salteado (ou deveria). É a ementa:
Assunto: Obrigações acessórias
Siscoserv. Serviço de transporte de carga. 1. Prestador de serviço de transporte de carga é alguém que se obriga com quem quer enviar coisas (tomador do serviço) a transportá-las de um lugar para outro, entregando-as a quem foi indicado para recebê-las. A obrigação se evidencia pela emissão do conhecimento de carga. 2. O obrigado a transportar que não é operador de veículo deverá subcontratar alguém que efetivamente faça o transporte. Logo, simultaneamente, será prestador e tomador de serviço de transporte. 3. Quem age em nome do tomador ou do prestador de serviço de transporte não é, ele mesmo, prestador ou tomador de tal serviço. Mas é prestador ou tomador de serviços auxiliares conexos (que facilitam a cada interveniente cumprir suas obrigações relativas ao contrato de transporte) quando o faz em seu próprio nome. 4. Se tomador e prestador forem ambos residentes ou domiciliados no Brasil, não surge a obrigação de prestação de informações no Siscoserv. 5. O valor a informar pelo tomador de um dado serviço é o montante total transferido, creditado, empregado ou entregue ao prestador como pagamento pelos serviços prestados, incluídos os custos incorridos, necessários para a efetiva prestação. Já o prestador informará o montante total do pagamento recebido do tomador pelos serviços que prestou, incluídos os custos incorridos, necessários para a efetiva prestação. Em ambos os casos, é irrelevante que tenha havido a discriminação das parcelas componentes, mesmo que se refiram a despesas que o prestador estaria apenas “repassando” ao tomador. 6. Quando o tomador de serviço de transporte não puder discriminar do valor pago a parcela devida ao transportador daquela parcela atribuída ao representante ou ao intermediário por meio de quem foi efetuado o pagamento do serviço principal, o transporte deverá ser informado pelo valor total pago. 7. O conhecimento de carga é um documento admissível como comprovante do pagamento relativo ao serviço de transporte tomado diretamente de um transportador efetivo (daquele que, de fato, realiza o transporte) domiciliado no exterior. Dispositivos legais: § 1º do art. 37 do Decreto-Lei nº 37, de 1966; arts. 730 e 744 do Código Civil; art. 25 da Lei nº 12.546, de 2011; Manuais do Siscoserv, 8ª edição, instituídos pela Portaria Conjunta RFB/SCS nº 1.895, de 2013; arts. 2º, II, e 3º da IN RFB 800, de 2007.
Analisando o texto da Solução de Consulta Disit/SRRF08 nº 8005/2017, verifica-se que ela inova, e muito, sobre as obrigações relativas ao serviço internacional de cargas (transporte) e o Siscoserv, distanciando-se muito da Cosit nº 257 e, mais ainda, da Cosit nº 66. Pretende “solucionar” a questão afirmando que:
A movimentação e armazenagem de cargas devem ser registradas no Siscoserv, sempre que forem tomados de prestadores residentes ou domiciliados no exterior. O valor da Taxa de Movimentação no Terminal (Terminal Handling Charge – THC), que é decorrente da prestação de serviços de transporte internacional de mercadorias; e demurrage, que é a indenização pela sobrestada (do navio ou contêiner além do prazo pactuado) devida pelo afretador, arrendatário, exportador ou importador ao armador ou dono do navio ou do contêiner, devem ser computados no valor da operação a ser informado no Siscoserv pelo importador, na condição de tomador do serviço de transporte internacional das mercadorias importadas, mesmo que esse valor tenha sido repassado ao prestador dos serviços por intermédio do agente de carga. […]
Quando a solução, que se refere a importação, fala de “movimentação e armazenagem”, por óbvio está se referindo a tais despesas ocorridas no exterior em um embarque em que coube ao importador brasileiro contratar tais serviços em função do seu contrato de compra e venda de mercadorias celebrado com o vendedor/ exportador estrangeiro.
Estes, de fato, seriam de responsabilidade do importador declarar, podendo tais serviços ser realizados por um ou mais prestadores.
Os serviços de movimentação e armazenagem, entre outros, podem ou não estar incluídos no conhecimento de transporte internacional de carga marítima (HBL) – evidencia escrita de contrato de transporte, quando emitido por um NVOCC, por exemplo. Nesse caso, efetivamente, comporiam o valor deste contrato e caberia ao importador declarar o valor contra o transportador contratual, utilizando uma única NBS, como muito claramente definiu a Cosit nº 257 e os manuais do Siscoserv.
Porém, poderia o importador brasileiro contratar prestadores diferentes para realizar cada um dos serviços separadamente. Sendo assim, teria um prestador para a armazenagem, outro para o THC e um terceiro para o transporte internacional de cargas – devendo, então, declarar três diferentes contratos ao Siscoserv, cada um com sua respectiva NBS.
Quando a Solução Disit fala de tais despesas, movimentação e armazenagem da carga, por lógica está falando daquelas que são realizadas fora do Brasil por prestadores estrangeiros. Não faria nenhum sentido tratar das despesas incorridas no Brasil, que, na importação, seriam prestadas por empresa com sede no Brasil, porto ou armazém alfandegado, para o importador brasileiro[2].
Com relação ao THC pago na chegada da carga no Brasil, que é outro daqueles pontos nebulosos do comércio exterior e sobre o qual já escrevemos anteriormente[3], deixaremos de mencionar neste texto (sugerimos a leitura – vide link no rodapé).
A solução Disit trata ainda da demurrage. Isso sim nos deixou bastante perplexos.
Afirma a solução que
Os serviços de intermediação de vendas, de frete, de THC, Demurrage e demais serviços relativos à movimentação e armazenagem de cargas devem ser registrados no Siscoserv, sempre que forem tomados de prestadores residentes ou domiciliados no exterior. O valor da Taxa de Movimentação no Terminal (Terminal Handling Charge – THC), que é decorrente da prestação de serviços de transporte internacional de mercadorias; e demurrage, que é a indenização pela sobrestada (do navio ou contêiner além do prazo pactuado) devida pelo afretador, arrendatário, exportador ou importador ao armador ou dono do navio ou do contêiner, devem ser computados no valor da operação a ser informado no Siscoserv pelo importador, na condição de tomador do serviço de transporte internacional das mercadorias importadas, mesmo que esse valor tenha sido repassado ao prestador dos serviços por intermédio do agente de carga
Primeiramente, por conclusão lógica, a operação que trata a solução é a operação de transporte internacional de carga. Outra não poderia ser.
A demurrage verifica-se somente na importação[4]; é evento futuro, que pode ou não ocorrer. E sua cobrança depende de cada armador e/ou agente de cargas.
Se o entendimento da solução de consulta for de fato aplicável, queremos crer que não, todo o lançamento de frete estaria sujeito a correção para inclusão do valor desta despesa futura, que, em que pese ter seu valor em dólares americanos, previamente registrado pelos armadores em cartórios de títulos e documentos para que seja dada a devida publicidade, não raramente são renegociados, ajustados, prorrogados e, muitas vezes, discutidos judicialmente em processos que podem demorar anos. Isso causaria um grande problema para os importadores.
A solução Disit nº 8005 colocou ainda um ponto final na discussão acerca da natureza jurídica da demurrage, um dos pontos mais polêmicos do direito marítimo. Sem qualquer menção de dúvida, bateu o martelo ao afirmar que é a “indenização pela sobrestada (do navio ou contêiner além do prazo pactuado) devida pelo afretador, arrendatário, exportador ou importador ao armador ou dono do navio ou do contêiner”.
Confundir e misturar frete com demurrage é um erro crasso de quem desconhece os institutos do direito marítimo.
Há de se analisar sempre o que cada coisa é para o direito (natureza jurídica). O frete internacional é o valor devido pelo serviço prestado pelo transportador, mediante remuneração. Ao incorrer o importador em demurrage, uma coisa não vira outra coisa, simplesmente. No Brasil, frete e demurrage têm naturezas jurídicas distintas.
A natureza jurídica da demurrage é duvidosa em vários países e no Brasil não é diferente. Há controvérsia entre os operadores do Direito, inclusive dos tribunais.
Segundo a Professora Eliana Octaviano, em sua obra[5] que não deveria faltar na estante de quem opera na área (os 3 tomos), sobre a natureza jurídica da demurrage:
A temática atinente à natureza jurídica da demurrage é extremamente polêmica. No Direito brasileiro, é latente a escassez doutrinária e de precedentes jurisprudenciais. A doutrina e jurisprudência oscilam entre enquadrar a demurrage como indenização por danos materiais em sede de responsabilidade civil contratual e entre destacar a natureza de multa. Destacam-se ainda alguns entendimentos recentes que sustentam o caráter de cláusula penal.
Compartilhando o caráter indenizatório da demurrage se enquadram Diniz (1988, p. 56), Sampaio de Lacerda (1984, p. 191) e Gibertoni (2005, p. 196). Atribuindo a natureza de multa se destacam Keedi e Mendonça (2002, p. 100), Anjos e Caminha Gomes (1992, p. 187), Lostado (2000, p. 10).
Sustenta Salguez (2005, p. 2) o caráter de cláusula penal da demurrage. No mesmo sentido, para Sorrentino Higa, D’Antônio e Ribeiro (2006, p. 12) e estando a demurrage prevista em contrato, a ela não se pode atribuir o caráter de multa pelo não cumprimento de obrigação. Trata-se de cláusula penal, de sanção econômica, contra a parte infringente da obrigação. Neste contexto, trata-se de responsabilidade civil contratual.
Do direito comparado, o Direito francês e o Direito alemão enquadram a natureza da demurrage como suplemento de frete, caso esteja prevista em contrato. No mesmo sentido, a legislação portuguesa ampara expressamente o caráter de suplemento de frete da demurrage.
Sustenta Esteves (1988, p. 61), com amparo da legislação portuguesa ora referenciada, a demurrage ser um suplemento de frete, pois, embora implique uma demora, a sobre-estadia não deverá ser entendida com uma situação de mora em que haja incorrido o afretador nem como uma violação de um dever contratual, mas um direito do afretador. Sustenta ademais que sobre-estadia consiste, simultaneamente, em um novo prazo concedido ao afretador e uma quantia complementar do frete, a ser paga em dinheiro no direito.
No Direito americano, demurrage apresenta natureza compensatória.
Entender o que a demurrage é para o Direito (natureza jurídica) implica vários reflexos.
Se entendermos que tem natureza indenizatória, distingue-se do frete, cuja natureza é de serviço. Se demurrage não é complemento do frete, estranho nos parece exigir que ele seja somado ao valor da operação de transporte para fins de Siscoserv, como estabelece a solução Disit.
Somente teria lógica exigir que a demurrage fosse incluída no total da operação para fins de Siscoserv se o entendimento do órgão consultado fosse de que ela é parte do frete, como entende parte da doutrina acima mencionada. Assim sendo, a demurrage, como complemento do frete, deveria ser base de cálculo dos tributos incidentes sobre a importação (valor aduaneiro) e sobre o valor a ser pago de marinha mercante.
Não pode a mesma Receita Federal entender demurrage como parte da operação de transporte internacional para fins de Siscoserv, definindo-a, todavia, como de natureza indenizatória. Se é parte do frete para o Siscoserv, devê-lo-ia ser também para fins de tributos, já que se está falando da mesma coisa sob a ótica de diferentes obrigações fiscalizadas pela mesma Receita Federal.
Já a Solução de Consulta Disit/SRRF09 nº 9054, publicado em 15.02.2017, da 9ª Região fiscal, que abrange Paraná e Santa Catarina, relativa à operação com mercadoria, os Incoterm e os serviços conexos, vinculada às soluções da Cosit nºs 222, 257 e 23, trouxe o mesmo entendimento daquelas quanto à obrigação de declarar ao Siscoserv aquele domiciliado no Brasil que efetivamente tenha relação contratual com um domiciliado no exterior, relativa ao seguro de carga, transporte internacional de carga e às operações de importação por conta e ordem. Todavia, nenhuma dessas soluções de consulta da Cosit trata da demurrage.
Na mencionada Solução de Consulta Disit/SRRF09 nº 9054, publicada em 15.02.2017, destaca-se:
O valor da demurrage, ou sobrestadia de contêineres, por esta não se caracterizar como custo necessário à efetiva prestação do serviço de transporte, não necessita ser informado no Siscoserv.
Ou seja, com a diferença de dias, duas Disit, de regiões diferentes, oferecem respostas a consultas tratando da demurrage com entendimento absolutamente distintos e, supostamente, vinculadas a soluções da Cosit que nada tratam sobre a demurrage. Portanto, inovam, contrariando o art. 22 da mesma IN RFB nº 1396/2011, resultando, quanto a esse ponto, vício formal.
Tudo isso só cria ainda mais insegurança para os empresários e operadores de Direito que se debruçam sobre este árduo tema, que, uma vez mal-entendido, pode resultar em pesadíssimas multas, capazes de levar uma empresa à falência.
Eis então que, em 20 de fevereiro de 2017, foi publicada a Solução de Consulta Cosit nº 108, tratando especialmente da demurrage e que acabou com todos as nossas esperanças de que tal equívoco não fosse reconhecido por ela. Da solução destacamos a ementa:
Assunto: Obrigações acessórias
Sobre-estadia de contêineres. Inclusão no valor do transporte em contêineres. Obrigação de informação no Siscoserv.
O valor pago ao transportador internacional a título de sobre-estadia de contêineres (demurrage) é parte do valor de transporte de longo curso em contêineres e deve ser informado no Siscoserv no código 1.0502.14.90 da NBS.
Esperávamos que a Cosit fosse esclarecer definitivamente o tema. Entretanto, os fundamentos utilizados para justificar o entendimento surpreenderam negativamente. Para a Receita Federal, “não é relevante a discussão sobre a natureza jurídica da sobre-estadia (sic)”. Nos pontos 19 e 20 do texto da Solução nº 108, a Cosit fundamenta:
(19) Examinemos agora a questão dos contêineres. Pelo que se depreende das informações trazidas pelo consulente, não há a contratação de locação de contêineres pelo importador. O serviço contratado pelo importador junto ao armador internacional é o transporte, que é feito em contêineres. Não é relevante se o transportador utiliza contêineres próprios ou os loca de outra fonte. Para o importador, a disponibilização dos contêineres está incluída no valor relativo ao transporte internacional que é pago ao transportador.
(20) Assim, o valor relativo à sobre-estadia de contêineres está igualmente abrangido pelo contrato de transporte, ou seja, é parte dele. Não é relevante a discussão sobre a natureza jurídica da sobre-estadia. Se fôssemos segregar esse valor do valor relativo ao transporte internacional, teríamos também que segregar o valor relativo à locação de contêineres, o que não é feito, uma vez que a disponibilização dos contêineres é parte do transporte. Da mesma forma, a demurrage é parte do transporte e tem, como seu elemento acessório, classificação na NBS no mesmo código do serviço principal (1.0502.14.90).
Não entendemos o que exatamente a Cosit quis esclarecer com tal fundamento. Se o objetivo era fundamentar, ele não foi atingido.
Por analogia, então, se locamos um veículo e acontece uma multa de trânsito recebida posteriormente, essa multa é o valor da locação?
Se contratamos um frete doméstico para levar uma mercadoria até o porto para exportação, e, por conta de uma greve da Receita Federal, o caminhão precisar ficar parado aguardando o retorno das operações, e a transportadora cobra a diária deste caminhoneiro como forma de compensá-la pelo período em que não pôde usar o caminhão e teve que remunerar o caminhoneiro, esse valor é indenização ou frete? Se for indenização[6], como deve ser tratado o IR de quem recebe a indenização? Se se for o frete, deve emitir uma nota fiscal ou documento fiscal equivalente relativo a essa diferença, com incidência de tributos municipais ou estaduais, conforme o caso, e os demais tributos federais?
A demurrage, se fizer parte do frete, não tem emissão de nota fiscal, mas tem todos os demais aspectos fiscais e contábeis que devem ser analisados. Hoje, com base na solução de consulta da Cosit, o entendimento de tais reflexos fora do Siscoserv ficou controverso.
O assunto da demurrage é polêmico sob qualquer ângulo que se analise.
Se formos ainda analisá-lo sob a ótica processual, para fins de definir a prescrição do direito de exigir em juízo o valor da demurrage, outro imbróglio deverá ser enfrentado.
Se prevalecer a tese de que a demurrage é uma indenização, como sustentou a Disit na primeira solução de consulta mencionada, a ação correta para pleiteá-la em juízo seria indenizatória, tendo por base a responsabilidade civil. Todavia, se entendida como multa ou cláusula penal, a ação a ser manejada é a de cobrança, ou de cobrança com perdas e danos[7].
Ainda sob a ótica processual, a natureza jurídica da demurrage implica o prazo de prescrição para que uma ação de cobrança seja manejada.
Se considerássemos o antigo Código Comercial, art. 449, que foi revogado pelo Código Civil de 2002, a prescrição seria de 1 ano. Porém, o atual Código Civil (2002) não trata dessa matéria especificamente, o que poderia levar a crer que o prazo seria de 10 anos.
Entretanto, se analisado como uma questão de responsabilidade civil, do art. 206, § 3º, V, do Código Civil, seria de 3 anos.
Para demonstrar como o tema é complexo e que fazer afirmações sobre este instituto tradicional do direito marítimo requer um pouco mais de dedicação, destacamos as jurisprudências do STJ acerca do prazo de sua prescrição, cuja definição está relacionada à natureza jurídica que se atribui à demurrage, bem como há de se analisar ainda se ela refere-se a transporte por meio de um único modal ou se multimodal, amparado por um único contrato – BL, emitido por um OTM (operador de transporte multimodal).
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Do ano de 2017, ação é de cobrança, portanto, não é indenizatória, tendo a prescrição em 1 ano, com base na Lei nº 9.611/1998, que trata do transporte multimodal:
Ementário – Superior Tribunal de Justiça – 2017
101000683637. Agravo interno no recurso especial. Ação de cobrança. Sobre-estadia de contêineres. Transporte multimodal. Prazo prescricional ânuo. Agravo interno desprovido. 1. A ação de cobrança de valores relativos a despesas de sobre-estadia de contêineres (demurrage), decorrente de contrato de transporte multimodal, prescreve em um ano, consoante previsto no art. 22 da Lei nº 9.611/1998. Precedente da Segunda Seção desta Corte: REsp 1.340.041, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 04.09.2015. 2. Na presente hipótese, tendo sido devolvidos os contêineres em 06.07.2007 e 12.09.2008 e proposta a ação de cobrança somente em 21.12.2010, fica implementado o prazo prescricional ânuo. 3. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ, AGInt-REsp 1.523.006, (2015/0066735-4), 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, DJe 07.02.2017, p. 4771)
Retirado do Ementário do Superior Tribunal de Justiça do ano de 2016, temos que pode ser de 10 anos, com base no art. 205 do Código Civil nos casos em que as partes não tenham estipulado a taxa da demurrage em seus contratos, e de 5 anos, conforme art. 206, § 5º, I, também do Código Civil, quando houver menção expressa da taxa no contrato.
101000661880. Processual civil. Agravo regimental no recurso especial. Recurso manejado sob a égide do CPC/1973. Contrato marítimo. Cobrança pelo atraso na devolução de container. Demurrage. Aplicação do prazo prescricional do art. 206, § 3º, V, do CPC/2002. Manutenção da decisão agravada. Agravo não provido. 1. Inaplicabilidade do NCPC neste julgamento ante os termos do Enunciado Administrativo nº 2 aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 09.03.2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 2. A Segunda Seção do STJ pacificou a orientação no sentido de que, em se tratando de ação que postula a cobrança da taxa de sobre-estadia de contêiner, o prazo prescricional aplicável será de 10 anos, conforme o art. 205 do CC/2002, caso não haja previsão da aludida taxa no contrato pactuado entre as partes, ou quinquenal, na hipótese de o instrumento contratual prever tal cobrança, a teor do que dispõe o art. 206, § 5º, I, do mesmo diploma legal. 3. Não sendo a linha argumentativa apresentada pela agravante capaz de evidenciar a inadequação dos fundamentos invocados pela decisão agravada, o presente agravo não se revela apto a alterar o conteúdo do julgado impugnado, devendo ele ser integralmente mantido. 4. Agravo regimental não provido. (STJ, AgRg-REsp 1.497.858, (2014/0189272-8), 3ª T., Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 18.10.2016, p. 2121)
Ainda de 2016, do mesmo STJ, expressamente desvincula a demurrage da despesa de armazenagem, condição que a Solução Disit tratou de unificar, ambos, ao transporte internacional de mercadoria para fins de declaração no Siscoserv. É o julgado:
101000665577. Processual civil e tributário. Ofensa ao art. 535 do CPC/1973 não configurada. Demurrage. Restrição não prevista em lei, imposta por ato normativo infralegal. Impossibilidade. Exegese do art. 18 da Lei nº 9.779/1999. 1. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC/1973. 2. Controverte-se a respeito da inclusão do débito relativo à demurrage na expressão “despesas decorrentes da permanência da mercadoria em recinto alfandegado”, inserida no art. 18 da Lei nº 9.779/1999. Prescreve a aludida norma: “O importador, antes de aplicada a pena de perdimento da mercadoria na hipótese a que se refere o inciso II do art. 23 do Decreto-Lei nº 1.455, de 7 de abril de 1976, poderá iniciar o respectivo despacho aduaneiro, mediante o cumprimento das formalidades exigidas e o pagamento dos tributos incidentes na importação, acrescidos dos juros e da multa de que trata o art. art. 61 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e das despesas decorrentes da permanência da mercadoria em recinto alfandegado”. 3. Ao regulamentar a execução da lei, a Alfândega da Receita Federal do Brasil no Porto de Paranaguá editou a Portaria nº 121/2011, incluindo no seu art. 1º que, além das despesas de armazenagem, também as de sobre-estadia (demurrage) teriam de ser pagas, para fim de início ou retomada do despacho de importação de mercadorias. 4. Demurrage é o termo que define tanto a demora para a realização da descarga da mercadoria submetida a transporte marítimo como, nos termos da Circular nº 2.393/1993, do Banco Central do Brasil, a “indenização convencionada para o caso de atraso no cumprimento da obrigação de carregar e descarregar as mercadorias no tempo pactuado”. 5. Trata-se de quantia devida ao armador ou ao proprietário do contêiner, pelo excesso do período em que este ficou injustamente privado da utilização do seu bem, e, portanto, possui natureza de direito obrigacional entre sujeitos de direito privado (in casu, entre o importador e o proprietário do contêiner), desvinculada das despesas ordinárias de armazenagem no recinto alfandegário. 6. Consequentemente, além de o ato normativo extrapolar o texto da legislação ordinária, tem-se que não se mostra razoável a interpretação do art. 18 da Lei nº 9.779/1999, tendente a condicionar o início ou a retomada do despacho aduaneiro à comprovação de regularidade das obrigações de natureza privada relativas à sobre-estadia dos contêineres em que a carga se encontra unitizada. 6. Recurso especial não provido. (STJ, REsp 1.573.871, (2015/0312008-5), 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 28.10.2016, p. 836)
Já o julgado do mesmo STJ, do ano de 2015, também entende como ação de cobrança, portanto, não tem natureza indenizatória, pela lógica processual, transporte unimodal, prazo prescricional de 5 anos.
01000604269. Embargos de declaração no agravo regimental no recurso especial. Contrato de transporte marítimo. Ação de cobrança. Sobre-estadia de contêineres. Demurrage. Prazo prescricional quinquenal. Art. 206, § 5º, I, do Código Civil. Precedentes do STJ. Ausência dos vícios previstos no art. 535, II, do CPC. Reexame de matéria já decidida. Inviabilidade. Embargos rejeitados. 1. Os embargos de declaração são cabíveis quando existir no julgado omissão, contradição ou obscuridade, nos termos do art. 535 do Código de Processo Civil, situação que não se observa na presente hipótese, porquanto houve manifestação suficiente sobre os temas ora questionados, reconhecendo-se que o transporte marítimo do caso em tela possui natureza unimodal (e-STJ, fl. 272). Aplicável, portanto, o prazo prescricional de 5 anos, nos termos do art. 206, § 5º, I, do Código Civil. 2. Ressalte-se que foi expressamente consignado no acórdão recorrido que a matéria de fato discutida nos autos compôs o voto divergente, o qual não integra o julgado apenas para fins de prequestionamento, nos termos da Súmula nº 320/STJ. 3. Embargos com nítida pretensão de rediscussão de matéria já julgada de maneira inequívoca pela Turma julgadora. 4. Embargos de declaração rejeitados. (STJ, EDcl-AgRg-REsp 1.542.349, (2015/0164755-7), 3ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 25.02.2016, p. 4384)
Desta forma, pode-se constatar que o tema demurrage não é algo consolidado na jurisprudência pátria. Desta forma, é forçoso que uma Solução de Consulta, vinculada a 2 soluções Cosit (66 e 257 de 2014), que nada dizem sobre isso, trate de resolver tema tão complexo do direito marítimo, até hoje indefinida no STJ, Corte superior para tratar essa matéria.
Note que, de outubro de 2016 para fevereiro de 2017, o STJ já tratou a prescrição de forma diferente, considerando a variável de haver ou não previsão da taxa no contrato, pois isso muda a natureza jurídica da demurrage, havendo ainda de se analisar se o transporte que a gerou era multi ou unimodal.
Concluímos, então, que as duas soluções analisadas oferecidas por diferentes Disit extrapolaram suas competências formais, eis que não poderiam realizar soluções de consulta sem que fossem vinculadas a uma Solução da Cosit que tratasse do mesmo objeto devendo seguir o mesmo entendimento. Tal condição não se verifica no presente caso.
Equivocada é a Solução de Consulta Disit/SRRF08 nº 8005/2017, que misturou diferentes institutos do direito marítimo, aduaneiro e portuário, pretendendo que sejam tratados pelo importador, em relação à obrigação de declarar ao Siscoserv como se despesas de armazenagem no porto (THC), despesas de intermediação e demurrage fossem serviços correlatos ao transporte internacional da carga e a ele devam ser computados, sem as devidas análises de suas diferentes variáveis.
Em especial quanto à demurrage, a Solução de Consulta Disit/SRRF08 nº 8005/2017, publicada em 06.02.2017, e a Solução de Consulta Disit/SRRF09 nº 9054, publicada em 15.02.2017, são contraditórias – sendo a 9054 da 9ª região fiscal muito mais razoável quanto à lógica da cobrança da demurrage, enquanto que a primeira mencionada revela um absoluto desconhecimento acerca do instituto.
Entretanto, as próximas soluções de consulta da Disit serão vinculadas à Solução Cosit nº 108, publicada em 20 de fevereiro de 2017, que definiu que a demurrage é parte do frete internacional e a ele deve ser somado para fins de declaração ao Siscoserv.
A Receita Federal não pode oferecer uma resposta acerca da demurrage para fins de Siscoserv sem considerar sua natureza jurídica e, consequentemente, todos os seus reflexos tributários e contábeis.
O Siscoserv não é um alienígena que veio de outro planeta ou outra dimensão e para o qual se busca algum especialista para tentar decifrar sua linguagem. Ele está inserido no ordenamento jurídico brasileiro e com ele deve dialogar permanentemente.
Não há como ignorar o que é a demurrage, sobre todos os seus aspectos, para “achar um jeito” de encaixá-la no Siscoserv. O correto, em nossa opinião, seria criar uma NBS para a demurrage e/ou para as indenizações, já que assim a definiram, para que, a partir de então, se passasse a exigir que fosse declarada no Siscoserv. Lembrando que indenização não causa variação patrimonial para quem recebe, mas apenas restabelece a condição que o credor tinha antes do evento danoso. Porém, causa variação para quem paga.
[1]Disponível em: <Solução de Consulta Cosit 66-2014>.
[2] Caso o contrato de compra e venda fosse pactuado de forma que coubesse ao exportador entregar a mercadoria em um ponto no Brasil, seria ele, o exportador estrangeiro, a contratar tais serviços de empresa brasileira, neste caso, prestadora e não tomadora de serviço.
[3]Disponível em: <[ARTIGO] Siscoservicamente falando: O THC é despesa do armador ou do importador?>.
[4] Na exportação, chama-se detention e longstading.
[5] MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de direito marítimo. 1. ed. São Paulo: Manole, v. II, 2008. p. 225.
[6] O entendimento majoritário é quanto à não incidência do IR quando se tratar de indenização por danos morais e materiais (com exceção do lucro cessante), tendo em vista a natureza de recomposição patrimonial ou extrapatrimonial dos contribuintes que fazem jus à indenização.
[7] Arts. 402 e 404 do Código Civil.
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