Embora constitua prática usual no transporte marítimo de mercadorias, a cobrança de sobrestadias (ou demurrage, como as sobrestadias são comercialmente mais conhecidas) relacionadas à demora na utilização de contêineres tem gerado polêmica na doutrina nacional no que se refere à sua natureza jurídica. Multa? Indenização pré-fixada? Cláusula penal? Suplemento do frete? Aluguel? Comodato?
No Brasil, infelizmente, ainda existe uma confusão conceitual entre a demurrage de navios e a de contêineres, fato que resulta enormes despesas aos consignatários. Poucos autores modernos se dispuseram a realizar um estudo mais profundo sobre o tema, que quase não encontra guarida na doutrina tradicional. A maior parte das obras disponíveis em nosso mercado é de autoria ou inspira-se em grandes mestres das décadas de 50 e 60, que jamais abordaram os aspectos do moderno transporte de mercadorias em contêineres, consolidado a partir da década de 80.
Além disso, há uma significativa divergência quanto à natureza jurídica da demurrage. Os dicionários jurídicos estrangeiros, ao mencionarem o conceito clássico da demurrage relacionada às embarcações, definem-na simplesmente como “penalty” (penalidade ou multa), posicionamento adotado no Brasil pelos mestres Carlos Rubens Caminha Gomes[1] e J. Haroldo dos Anjos[2]. Ao adaptar-se esse conceito aos contêineres, portanto, a maior parte da doutrina continuou a entender que a demurrage é uma espécie de multa.
Sobre a demurrage de navios, a doutrina clássica sempre entendeu tratar-se de indenização pré-fixada. Na primeira metade do século XX, assim já definiam Carlomagno[3], Constant Smeeters e Gustave Wilkelmolen[4], bem como o mestre Ripert, que afirmou: “A meu ver, é certo que as sobrestadias constituem perdas e danos” [5]. Os professores britânicos William Payne e E. R. Hardy Ivamy não discreparam: “Demurrage é uma quantia estipulada no contrato de afretamento a ser paga pelo afretador como indenização pré-fixada por atraso além das estadias.” [6] Os mestres estrangeiros foram seguidos no Brasil por Sampaio de Lacerda[7] e Carla Adriana Comitre Gilbertoni[8]. Ripert, Smeeters e Wilkelmolen e Sampaio de Lacerda mencionam em suas obras que parte da doutrina francesa, e, entre os portugueses, José M. P. Vasconcelos Esteves[9], vêem a demurrage de navios como suplemento de frete. Mais recentemente, Eliane Maria Octaviano Martins[10] menciona ainda o entendimento da doutrina americana no sentido de que a demurrage de navios teria natureza compensatória.
O conceituado dicionário jurídico americano Black’s Law Dictionary trouxe em sua Oitava Edição, publicada em 2004, subverbetes diferentes para as duas situações: sobre a demurrage de navios, a publicação define que é “indenização pré-fixada devida pelo afretador ao armador pela incapacidade do afretador de embarcar e desembarcar as cargas no tempo acordado” [11]. Sobre a demurrage de contêineres, define que é “cobrança decorrente da devolução tardia de contêineres marítimos ou outros equipamentos”[12]. Perante o Direito Brasileiro, no entanto, em ambas as situações os verbetes enquadram as sobrestadias como cláusulas penais, senão vejamos.
Não obstante tratarem-se de institutos com mecanismos de cobrança distintos, conforme exporemos melhor adiante, a divisão do conceito jurídico de demurrage só aparece no Black’s Law Dictionary porque, ao contrário do que ocorre em países civilistas como o nosso, nos países em que se aplica a Common Law existe uma distinção jurídica entre os significados de multa e indenização pré-fixada para perdas e danos, tal qual nos ensina o professor Clive M. Schmitthoff: “Pela lei inglesa, uma quantia fixa a ser paga por quebra contratual pode ser uma indenização pré-fixada ou uma multa. (…) No que concerne ao tratamento das cláusulas penais contratuais em outros sistemas legais, o Sr. Peter Benjamin aduz que — a extrema complexidade das leis francesas, alemãs e soviéticas sobre as cláusulas penais, a começar pelo princípio de que as cláusulas penais são ou não são passíveis de modificação, cada sistema trabalhou sua regra, adotando uma série de exceções que deram origem a uma considerável incerteza na prática… Essas observações, entretanto, não se aplicam ao países de commom law, onde a distinção inglesa entre indenização pré-fixada e multa se aplicam.” [13] Realmente, no Brasil, que segue o sistema civil similar ao francês, alemão e russo mencionados pelo professor Schmitthoff, o conceito de indenização pré-fixada contratualmente enquadra-se nas hipóteses de cláusulas penais, previstas pelo nosso Código Civil em seus artigos 408 e seguintes, admitindo, inclusive, limitações à sua aplicabilidade, o que é vedado pelo sistema Inglês.
Como visto, não há qualquer dúvida no sentido de que a demurrage de navios é uma indenização pré-fixada no contrato de afretamento, por meio da qual o afretador compensa o armador pelos eventuais prejuízos oriundos de atrasos nas operações de carga e descarga. Na legislação pátria, esse conceito de indenização pré-fixada contratualmente é atribuído às cláusulas penais estatuídas no Código Civil, sendo que, no caso específico das sobrestadias de navio, as mesmas são também reguladas pelo Código Comercial, ainda em vigor no que tange ao transporte marítimo de mercadorias.
Para este tipo de indenização não há qualquer limitação, aplicando-se a regra “once on demurrage, always on demurrage”[14], ausência de limitação esta que possui aspecto temporal, não devendo ser confundida com a possível e necessária limitação de valor tratada mais adiante, sob pena de parecermos contraditórios. A aplicabilidade das cláusulas concernentes às sobrestadias vem, desde o nascedouro, limitada pelas regras que estabelecem exceções à cobrança das estadias, tornando seu pagamento uma verdadeira exceção às hipóteses estabelecidas no contrato de afretamento. Durante o período das sobrestadias não se consideram exceções como a contagem do prazo apenas em dias úteis e com condições climáticas favoráveis que costumam aparecer em algumas cartas-partidas, ou até mesmo o ressarcimento de diárias por meio do “despatch money”, por exemplo.
[epico_capture_sc id=”21329″]No que tange à demurrage de contêineres, a discussão só começou a ser tratada muito recentemente pelos doutrinadores nacionais e internacionais, tendo em vista o próprio processo de unitização das cargas em contêineres tratar-se de uma situação nova, considerando-se a história da navegação. Especificamente sobre o tema, a doutrina nacional também diverge e está longe de encontrar um consenso. O professor Theóphilo de Azeredo Santos[15], já mencionava o entendimento doutrinário que considerava a demurrage de navios como cláusula penal, seguido modernamente por Oto Salgues[16]. Para Carla Adriana Comitre Gilbertoni, a demurrage de container é uma multa que deve estar prevista num contrato de locação de espécie atípico, que guarda similitude com o comodato[17], posicionamento também mencionado por Eliane Maria Octaviano Martins[18]. A Jurisprudência brasileira majoritária sobre o tema tem entendido pela caracterização da demurrage de contêineres como indenização, muito embora algumas decisões já admitam a hipótese de que a demurrage de contêineres possa ser considerada cláusula penal.[19]
Conforme visto acima, entendemos que a demurrage de contêineres também deve ser tratada como cláusula penal, simplesmente porque na legislação brasileira esse é o instituto que regula as indenizações por perdas e danos pré-fixadas contratualmente. Não há em nosso país distinção entre indenização pré-fixada de danos e multa contratual, tal qual existe no direito oriundo dos países que aplicam a Common Law. Ademais, o instituto da demurrage foi criado com o objetivo único de implementar um mecanismo de compensação ágil, para uma atividade na qual a rapidez das transações comerciais e a resolução dos problemas delas oriundas faz-se imprescindível. Como nos ensina o mestre português Antonio Pinto Monteiro, é aí que reside a função indenizatória da cláusula penal[20].
Assim sendo, tal qual a demurrage de navios, a demurrage de containers configura-se cláusula penal, por meio da qual o armador visa coibir a injusta retenção do seu equipamento e compensar-se, tanto pelo custo incorrido com leasing de novos equipamentos, como pela impossibilidade de gerar fretes a partir do contêiner retido. A composição do cálculo do frete leva em consideração estes custos, motivo pelo qual o período de utilização livre do contêiner, conhecido como free-time, transcorre com base em dias corridos, não havendo qualquer tipo de compensação se o contêiner for devolvido antes de findo o free-time, ao contrário do que ocorre com a demurrage de navios, onde se prevê a compensação dos valores por meio do “despatch money”.
Há de se ressaltar, ainda, o caráter coercitivo da demurrage enquanto cláusula penal, em seu poder de reforçar o cumprimento das obrigações estipuladas no conhecimento de transporte, que traz uma série de obrigações ao usuário do transporte, e não só ao armador. Dentre essas obrigações estão, além do pagamento do frete, a devolução do container no prazo avençado, sob pena do pagamento da multa diária estipulada na cláusula penal de demurrage. Isso se dá porque os custos relacionados à utilização do contêiner são embutidos no valor do frete pago pelo Consignatário, bem como uma projeção de fretes que o mesmo eventualmente poderia gerar.
Outro fator muito importante há de ser destacado em nosso estudo: a realidade do transporte marítimo no Brasil, que é bastante diferente da realidade do transporte marítimo internacional. Com a constante queda nos preços dos fretes, a cobrança da demurrage de contêiner no Brasil tornou-se para os armadores um excelente negócio, superando muitas vezes a lucratividade de sua própria atividade fim. Enquanto um contêiner simples de 20’’, obtido por sistema de leasing custa ao armador, em média, US$1,50 por dia, as taxas de demurrage praticadas no mercado nacional e cobradas dos usuários dos serviços de transporte marítimo rendem, em média, US$30,00 por dia ao armador, sem qualquer limitação, caracterizando lucro exorbitante.
O Direito Brasileiro prevê uma série de limitações ao lucro exorbitante, o que restou devidamente estatuído no novo Código Civil, a começar pela redação expressa do artigo 884, que veda o enriquecimento sem causa. Corroborando o mesmo princípio, os artigos 412 e 413 do Código Civil estabelecem mecanismos para limitação de cláusulas penais manifestamente excessivas, como é o caso da demurrage de containers, onde a relação entre o prejuízo e o valor a ser indenizado ultrapassa qualquer limite de razoabilidade, ofendendo aos princípios da boa fé e da função social dos contratos.
Não se pode aceitar a tese de que a simples mora pode obrigar o consignatário a aceitar prejuízos econômicos exorbitantes, principalmente, quando comparados ao valor do frete pago ou ao próprio valor do contêiner. Na lição de Teori Albino Zavascki [21]: “Suficiência, insuficiência, excesso, compatibilidade, são conceitos jurídicos abertos, a serem preenchidos valorativamente pelo juiz conforme as circunstâncias do caso concreto e tendo em conta, sempre, a finalidade da multa. Levar-se-á em consideração, certamente, a natureza da obra ou dos serviços a serem executados, o grau de dificuldade, a condição pessoal do devedor, sua capacidade econômica. É nesse sentido e sob esse aspecto, e não quanto ao seu valor, que a multa deve ser ‘compatível com a obrigação’.”.
Nesse diapasão, podemos concluir que cabe a nós, operadores do Direito Marítimo, esclarecer essas diferenças conceituais ao Judiciário, demonstrando-se a necessidade de aplicação da limitação da demurrage ao valor do frete ou ao valor do contêiner, enquanto cláusula penal, conforme previsto no artigo 412 do Código Civil, ou ao menos a redução de suas diárias a patamares compatíveis com o prejuízo que se pretende indenizar por meio dessa modalidade de cláusula penal, tendo em vista que “…o Código Civil determinou que a redução da cláusula penal é verdadeiro dever do magistrado, não mais se caracterizando como uma mera faculdade, como era previsto no Código Civil de 1916.”[22]
Não se pretende defender aqui a inaplicabilidade da cláusula penal de demurrage nos contratos de afretamento (cartas-partidas) e nos contratos de transporte marítimo (conhecimentos de transporte). Pretendemos apenas alertar o mercado para a necessidade de adequação de tais cláusulas à realidade do mercado nacional, de modo que tais penalidades se tornem razoáveis e compatíveis com a realidade do transporte de mercadorias no Brasil.
[22] FLORENCE, Tatiana Magalhães, Op. Cit., pg. 536.
Deixar comentário